" (...) Tempestades me impediram de escrever. Relatarei o que me for possível, nesta ressaca amarga daquela doce tempestade. Sinto que já passou, mas há certas cicatrizes que só param de doer quando absolvidas. Há algo de divino na dor e no amor. Quisera eu ter tripulação, como se vê nos filmes. Quisera eu acreditar na total ignorância. Dói-me a solidão como me dói a sapiência. É um doer de leve, um doer ainda de pijamas e meias verdades. Mas enquanto não posso ouvir o que não quer calar, de olhos abertos, ouso permanecer. (...)  Deslizo como que na superfície de um espelho. Sinto que as ondas beijam-me o casco e inebrio-me sereno. Sei que ainda preciso partir. Aguardo o momento preciso de não mais aguardar. Parto. Lanço-me estonteante e breve nessa miragem de mim. Vejo-me então. Ainda que lúcido e pálido, nítido e cálido. Perco-me em mim. Distante. O foco. Aqui estou. No imenso de um meio oco que suga. Na palma de alguma mão. Nos olhos de um marujo intruso, que insiste em me navegar. (...) 10 mil 180 dias - Algo acontece. Ventos amigos vêm trazer-me ar. Minhas velas insistem em seguir tufões, mas meu leme é astuto, apesar de distraído. Preparam-me para a grande viagem. Eu sigo, atento. O tesouro me pesa, quanto mais duvido de sua preciosidade. Carrego-o simplesmente, sem porquês. Onde em mim posso afundar-me? Perdi meu plano de rota atrás de um plano de fuga. Talvez do último, ou do mesmo, talvez. Mas toda popa reflete as estrelas, rota do mar. Minha rota está em mim. O mar está puxando agora, como se eu estivesse a atracar. Mas estou a esmo a ermo. Ao acaso no deserto. Num navegar lento e inexorável. Como gargalhar sempre numa piada repetida. Uma miragem recorrente. Submergir é preciso. Apenas submergir. (...) Sou um vazio latente. Um oco vibrante. Um violão sem cordas. Um sopro pra dentro. Um inverso. Um vão. Um vácuo. Um tolo. Sofro a busca incansável das rédeas desse cavalo mocho, mas não ouso sequer erguer as mãos para alcança-las à minha espera. Arremesso-me contra grandes pedras marinhas na espera de rasgar meu casco e, finalmente. Não é minha palavra a desonra. É minha voz, que insiste no pré e existe no pós. Minha voz me atravessa. Quero gritar. Explodir em guelras nesse universo vácuo dum expirar o nada. Quero adiantar-me. Quero saltar os ponteiros e chegar antes do tempo. Precipito-me. E paro. Paro diante do abismo que construí com meus óculos espelhados. Não salto. Não ouso. Insisto. Penso. Aguentarei. Aguentarei. Aguentarei. Um nó. Os marinheiros é que entendem de nós. Nós que atam. Que prendem. Que retém o tempo sem detê-lo. Que só os marinheiros contêm. Minhas cordas se enozaram. Enozei-me. Desenozarei-me então. Como marinheiro que sou. Afinal, todo barco é marinheiro gaiato. (...) 10 mil 227 dias - Ventos trouxeram o tempo que corrigiu minha rota. Minha âncora, dilacerada, não pôde resistir. Navego na velocidade do vento pra onde o tempo me levar. Vou afinal. Enfim afundo. Por baixo d’água perfuro o planeta de mim. Navego a cambalhotas. Navego enfim. (...) "
Trecho de Diário de Bordo
Renata Gabriel


COPYRIGHT foto e texto Renata Gabriel

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