AMOR, CIÊNCIA IMPOSSÍVEL
'É difícil falar de amores passados. Sempre que isso me acontece, embora saiba que estou sendo sincero, tenho a impressão que de alguma forma estou mentindo. É como falar de uma forte cólica ou de uma dor de dentes. Temos a recordação do sofrimento, mas a dor não estando mais presente parece que nunca existiu. E, no entanto, sabemos como foi difícil esse momento.
O amor é para se falar no presente. Amor que acabou é sempre nostálgico, pela sua insuportável virtualidade. Amor que passou é desvirtuado pela memória do prazer ou da dor, frequentemente pelos dois sentimentos entrelaçados. As palavras que procuram reviver a emoção são sempre falsas, insuficientes: pecam por apatia ou despudor. O amor contado se banaliza ou vira falsa literatura. Não se pode falar do amor com ódio porque o seu reflexo se deforma. E não há palavras de amor para o amor, sem pieguice. O amor, no passado, é um fio de navalha cega. Lembra o corte mas não fere.
Viram que eu tinha razão quando eu falei de literatice? E no entanto o que há de outro para falar, na vida, senão de amor? Do ódio, seu avesso?
Não há como ser crítico, pseudamente objetivo, quando se fala de paixão. Se não se aborda a paixão com a demência da convicção absoluta está-se falando do que quiserem, jamais de paixão. Por isso, manhosamente, os escritores falam da paixão dos outros, dos desvarios de seus personagens, nunca deles mesmos. Falam dos atos, dos gestos, da vertigem das paixões desarvoradas, sem freios nem fronteiras, sem outra referência que não seja a própria paixão. Se não tivesse receio do ridículo, afirmaria que a paixão é a definição mais perfeita do infinito. Einstein, um homem sem medos mesquinhos, língua de fora, acho que gostaria desta afirmação.
Há quem pense que o amor confunde, e a ciência explica. Penso o contrário, e não se trata de uma piada. De todas as ciências, a ciência do amor é a mais perfeita, por que é feita apenas de axiomas. A mais inquestionável e mais reveladora. As ciências evoluem, se transformam, se redimensionam. O amor é sempre igual a si mesmo, na sua gênese e curvatura. Se transforma, acaba. O amor é seu princípio e seu próprio fim, seu alfa e omega.
Quando falo de amor considero igualmente a paixão. Sei que fazem uma distinção entre uma coisa e outra. Eu não: amor sem paixão não é amor, paixão sem amor não pode existir. Faces da mesma moeda, de uma só cara.
Se o amor, em jogo de salão, tivesse uma forma: seria uma hipérbole.
Se o amor, em jogo de salão, fosse uma parte do corpo: seria qualquer uma das suas partes vadias, qualquer um dos seus reflexos impalpáveis.
Se flor: seria também rosa, flor que mais detesto porque capaz de todas as paixões, até as mais banais, uma impossibilidade da paixão.
Definir a paixão é justificar a fé: outra impossibilidade.
Amei mulheres e busquei palavras para essas paixões perdidas. Desencontrei-me em caras, máscaras e descaramentos; em olhares metódicos e olhares extraviados; em corpos disciplinados na loucura e loucos na disciplina; em metódicos desvarios. Só tive a ilusão do encontro, ainda assim fugaz, na contradição.
Não se pode falar de uma paixão num encontro das lembranças com a imaginação, coisas finitas. Melhor, não se pode falar de paixão. Talvez, quem sabe, apenas recordá-la nos vazios da memória."
(Ruy Guerra)
COPYRIGHT foto e texto Ruy Guerra (direitos reservados)
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