O metrô segue por intermináveis estações. É tarde da noite, talvez
seja o último trem. As estações estão praticamente vazias, à exceção de
alguns mendigos que vagam ao léu ou dormem num banco, e dos guardas
vigilantes. Os carros também estão vazios em sua maioria.
Um homem de aproximadamente 40 anos, bem vestido, mas um pouco desgrenhado, aguarda solitário a chegada do trem. Ele tem aparência cansada, a gravata torta no colarinho aberto, o paletó na mão. Ele olha para o relógio da estação algumas vezes e se angustia com o horário avançado, onze e quarenta e dois. O trem finalmente chega à estação e o homem entra.
Dentro do vagão há um rapaz com aparência suja, que dorme num banco ao fundo.
O homem pensa:
- Puta merda.
(silêncio)
- Puta que pariu!
(silêncio)
- Caralho!
(angústia - silêncio)
- Que que eu vou inventar agora?
(olha para o rapaz dormindo)
- E esse aí? Coitado. Porra nenhuma, ele é que tem sorte!
(olha para o resto do vagão vazio)
- Puta que pariu!
(silêncio)
- Que que ela vai pensar de mim? Isso nunca aconteceu... Pelo menos não assim, na primeira vez.
(olha para fora do trem, as paredes correm aceleradas)
- Também, é normal... Muita preocupação... Ela também não era tão gostosa assim.
(olha o relógio no pulso, ele usa uma aliança na mão esquerda)
- Quinze pra meia-noite, puta merda! E nem valeu a pena... Tô fudido!
(olha para as mãos vazias)
- Putz!!! Cadê minha pasta? Caralho, onde foi que eu deixei? No motel??? Não calma, pensa... No escritório... É... Ficou no escritório. Peraí, peraí... Se concentra... Eu saí do escritório com o pessoal, entrei no carro da Márcia... Será? No carro da Márcia?
(pega o celular no bolso do paletó)
- Vou ligar pra ela... Não... Ela vai rir da minha cara... Ou vai estar puta, né? Ai!
(guarda o celular no bolso da calça)
- E agora?
(o trem pára numa estação)
- Volto no escritório?
(faz menção de sair, mas volta)
- Não... Depois não tem mais metrô. E se não estiver no escritório? Puta que pariu!
(entra um homem mais velho, embriagado, que traça uma linha e caminha com dificuldade até sentar num banco)
- E esse aí? Filho da puta! Tá pior que o Valdo. Desgraçado. Enche a cara e depois vai bater na minha irmã. Filho da puta! Qualquer dia vou encher ele de porrada. Ele ta merecendo! Ai caralho! Que que eu vou falar agora? Chego em casa meia noite, sem a pasta... Fudeu! Ela vai desconfiar... Da última vez foi por pouco... Merda! Pior que meu pau nem levantou! Ai... Caralho... Que vergonha... Amanhã o escritório todo vai estar sabendo... Que merda!
(ele está muito puto, soca o ar com o punho fechado, bate na cabeça)
- Bosta! Que que eu vou falar?
(o bêbado vomita num canto)
- Velho nojento! Merece morrer! Cretino. Filho da puta...
(chuta um banco)
- Merda!
(o trem pára numa estação, entra uma mulher gostosa que fica em pé no centro do carro, ele a acompanha com o olhar, de boca aberta)
- Uau... Que essa delícia ta fazendo no metrô uma hora dessa? Será que é puta? Vou mexer com ela. Não, melhor não. Não parece puta. E se não for? Vou perguntar as horas.
(ele vira-se de costas pra ela e tira o relógio do pulso, disfarçando, e guarda no bolso da calça - vai até ela com intuito de começar uma conversa, ela percebe e reage, se afastando. Ele pára, desiste)
- Porra... Hoje não é meu dia... Era só o que faltava... Brochar com a secretária nova! Que merda!
(ele olha pra gostosa ao fundo)
- Piranha! Aposto que é piranha!
(o bêbado se levanta e vai até o rapaz que dorme, tenta acordá-lo, ele não responde)
- Já sei, vou falar que fui assaltado. Isso. Não... Sim... Fui na delegacia dar queixa, por isso me atrasei... Não. Será?
(olha para o bêbado e pro rapaz dormindo)
- E esse aí? Que porra quer agora?
(o bêbado sacode o rapaz até ele cair no chão, sem acordar. Todos percebem que ele está morto. Ninguém fala nada, apenas se entreolham)
- Puta que pariu... Era só o que me faltava! Agora que ela não vai acreditar mesmo! Ou não... Pode ser a desculpa que eu precisava... Vou chamar a polícia na próxima estação. Não. Mais merda ainda... Melhor deixar ele aí. Ninguém mandou também morrer no metrô a essa hora!
(ele olha para o pulso, não vê o relógio)
- Caralho, cadê meu relógio?
(procura no bolso, encontra)
- Putz... Aquela puta! É puta, só pode ser puta.
(olha pro relógio, se assusta)
- Dez pra meia noite, caralho... Essa porra não chega nunca!
(coloca o relógio no pulso novamente, toca seu celular, ele se desespera, todos olham para ele, ele encara o bêbado, a gostosa, o morto e o celular, não sabe o que fazer, deixa tocar até parar)
- É ela... Porra... E agora? Ligo de volta ou não ligo? Eu devia ter ido pra casa na hora certa! Eu só faço merda! Pra que que eu fui casar, também? Eu nem queria... Agora essa pressão, porra! Eu tenho direito de fazer o que eu quiser!!! Caralho!!!
(olha para o morto no chão, o bêbado está sentado no banco onde estava o rapaz morto, alheio na sua bebedeira, talvez nem tenha notado que o rapaz está morto)
- E esse aí, jogou o defunto no chão e agora fica babando em cima. Imbecil! Vontade de dar uma porrada nele! Já sei! Vou falar que tentaram me assaltar e eu briguei, me machuquei um pouco... Ela vai até ficar com dó de mim!
(ele começa a tentar dar um murro em seu próprio rosto, mas nunca forte o suficiente, não tem coragem)
- Merda! Assim não dá pra falar isso... Se eu bater no bêbado ele vai cair, não vai conseguir revidar... Bosta...
(olha pra gostosa)
- E se eu mexer com ela? Será que ela me dá um soco? Será que soco de mulher dá pra marcar o rosto? Não... E se ela me der um arranhão? Aí ai ser pior...
(olha para baixo, dialoga com o próprio pênis)
- E você, hein, seu porra? Me deixa na mão e agora fica aí, se engraçando com a putinha! Merda!
(o trem pára numa estação, a gostosa sai assustada, olhando para trás, o morto no chão)
- Chamo a polícia?
(a porta se fecha e o carro sai)
- Não... Polícia nunca é bom...
(olha para os nomes das estações acima da porta)
- Já ta chegando meu ponto... Porra... Era bom demais na faculdade, solteiro, sem responsabilidade... A mulherada em cima... Agora, nem essa puta olha pra mim... Vai ver pressentiu que eu brochei hoje. Merda! Ainda tem essa! E minha reputação? E se a galera da faculdade sabe disso, tô perdido! Tomara que a Márcia não fale pra ninguém... Não... Não vai falar... Pega mal pra ela também. Ou será que fala? De repente ficou ofendida com a minha brochada... Sei lá... Mulher é bicho estranho... Caralho! Que que eu vou falar em casa? Pensa porra!
(o bêbado vomita em cima do morto)
- Que nojo! Porra... Ninguém merece um filho da puta desses... Nem depois de morto! Esse aí é pior que o Valdão. Nojento. Vou dar uma porrada nele!
(caminha decidido até o bêbado, que cai no chão ao lado do morto)
- Merda... Aí já é covardia... Bater num desgraçado caído! Caralho! E se alguém me ver aqui sozinho com esses dois? Que que vão pensar? Porra, isso vai dar merda. Vou sair logo daqui.
(olha para as estações indicadas acima da porta)
- Falta duas estações. Já sei... Desço na próxima e vou o resto a pé. Aí já é uma desculpa pra hora. Falo que vi um morto no vagão, o trem parou pra averiguação, veio a polícia, o trem teve que ficar interrompido e eu vim a pé. Ainda fico de herói. Isso. É isso. Amanhã sai no jornal, ela confirma e fica tudo bem. Isso aí.
(o trem pára na estação, ele caminha até a porta)
- Tá vendo, nem tudo está perdido... Tirei a sorte grande! Bom, vou recapitular...
(olha para o relógio)
- São cinco pra meia noite...
(a porta abre, ele sai).
Um homem de aproximadamente 40 anos, bem vestido, mas um pouco desgrenhado, aguarda solitário a chegada do trem. Ele tem aparência cansada, a gravata torta no colarinho aberto, o paletó na mão. Ele olha para o relógio da estação algumas vezes e se angustia com o horário avançado, onze e quarenta e dois. O trem finalmente chega à estação e o homem entra.
Dentro do vagão há um rapaz com aparência suja, que dorme num banco ao fundo.
O homem pensa:
- Puta merda.
(silêncio)
- Puta que pariu!
(silêncio)
- Caralho!
(angústia - silêncio)
- Que que eu vou inventar agora?
(olha para o rapaz dormindo)
- E esse aí? Coitado. Porra nenhuma, ele é que tem sorte!
(olha para o resto do vagão vazio)
- Puta que pariu!
(silêncio)
- Que que ela vai pensar de mim? Isso nunca aconteceu... Pelo menos não assim, na primeira vez.
(olha para fora do trem, as paredes correm aceleradas)
- Também, é normal... Muita preocupação... Ela também não era tão gostosa assim.
(olha o relógio no pulso, ele usa uma aliança na mão esquerda)
- Quinze pra meia-noite, puta merda! E nem valeu a pena... Tô fudido!
(olha para as mãos vazias)
- Putz!!! Cadê minha pasta? Caralho, onde foi que eu deixei? No motel??? Não calma, pensa... No escritório... É... Ficou no escritório. Peraí, peraí... Se concentra... Eu saí do escritório com o pessoal, entrei no carro da Márcia... Será? No carro da Márcia?
(pega o celular no bolso do paletó)
- Vou ligar pra ela... Não... Ela vai rir da minha cara... Ou vai estar puta, né? Ai!
(guarda o celular no bolso da calça)
- E agora?
(o trem pára numa estação)
- Volto no escritório?
(faz menção de sair, mas volta)
- Não... Depois não tem mais metrô. E se não estiver no escritório? Puta que pariu!
(entra um homem mais velho, embriagado, que traça uma linha e caminha com dificuldade até sentar num banco)
- E esse aí? Filho da puta! Tá pior que o Valdo. Desgraçado. Enche a cara e depois vai bater na minha irmã. Filho da puta! Qualquer dia vou encher ele de porrada. Ele ta merecendo! Ai caralho! Que que eu vou falar agora? Chego em casa meia noite, sem a pasta... Fudeu! Ela vai desconfiar... Da última vez foi por pouco... Merda! Pior que meu pau nem levantou! Ai... Caralho... Que vergonha... Amanhã o escritório todo vai estar sabendo... Que merda!
(ele está muito puto, soca o ar com o punho fechado, bate na cabeça)
- Bosta! Que que eu vou falar?
(o bêbado vomita num canto)
- Velho nojento! Merece morrer! Cretino. Filho da puta...
(chuta um banco)
- Merda!
(o trem pára numa estação, entra uma mulher gostosa que fica em pé no centro do carro, ele a acompanha com o olhar, de boca aberta)
- Uau... Que essa delícia ta fazendo no metrô uma hora dessa? Será que é puta? Vou mexer com ela. Não, melhor não. Não parece puta. E se não for? Vou perguntar as horas.
(ele vira-se de costas pra ela e tira o relógio do pulso, disfarçando, e guarda no bolso da calça - vai até ela com intuito de começar uma conversa, ela percebe e reage, se afastando. Ele pára, desiste)
- Porra... Hoje não é meu dia... Era só o que faltava... Brochar com a secretária nova! Que merda!
(ele olha pra gostosa ao fundo)
- Piranha! Aposto que é piranha!
(o bêbado se levanta e vai até o rapaz que dorme, tenta acordá-lo, ele não responde)
- Já sei, vou falar que fui assaltado. Isso. Não... Sim... Fui na delegacia dar queixa, por isso me atrasei... Não. Será?
(olha para o bêbado e pro rapaz dormindo)
- E esse aí? Que porra quer agora?
(o bêbado sacode o rapaz até ele cair no chão, sem acordar. Todos percebem que ele está morto. Ninguém fala nada, apenas se entreolham)
- Puta que pariu... Era só o que me faltava! Agora que ela não vai acreditar mesmo! Ou não... Pode ser a desculpa que eu precisava... Vou chamar a polícia na próxima estação. Não. Mais merda ainda... Melhor deixar ele aí. Ninguém mandou também morrer no metrô a essa hora!
(ele olha para o pulso, não vê o relógio)
- Caralho, cadê meu relógio?
(procura no bolso, encontra)
- Putz... Aquela puta! É puta, só pode ser puta.
(olha pro relógio, se assusta)
- Dez pra meia noite, caralho... Essa porra não chega nunca!
(coloca o relógio no pulso novamente, toca seu celular, ele se desespera, todos olham para ele, ele encara o bêbado, a gostosa, o morto e o celular, não sabe o que fazer, deixa tocar até parar)
- É ela... Porra... E agora? Ligo de volta ou não ligo? Eu devia ter ido pra casa na hora certa! Eu só faço merda! Pra que que eu fui casar, também? Eu nem queria... Agora essa pressão, porra! Eu tenho direito de fazer o que eu quiser!!! Caralho!!!
(olha para o morto no chão, o bêbado está sentado no banco onde estava o rapaz morto, alheio na sua bebedeira, talvez nem tenha notado que o rapaz está morto)
- E esse aí, jogou o defunto no chão e agora fica babando em cima. Imbecil! Vontade de dar uma porrada nele! Já sei! Vou falar que tentaram me assaltar e eu briguei, me machuquei um pouco... Ela vai até ficar com dó de mim!
(ele começa a tentar dar um murro em seu próprio rosto, mas nunca forte o suficiente, não tem coragem)
- Merda! Assim não dá pra falar isso... Se eu bater no bêbado ele vai cair, não vai conseguir revidar... Bosta...
(olha pra gostosa)
- E se eu mexer com ela? Será que ela me dá um soco? Será que soco de mulher dá pra marcar o rosto? Não... E se ela me der um arranhão? Aí ai ser pior...
(olha para baixo, dialoga com o próprio pênis)
- E você, hein, seu porra? Me deixa na mão e agora fica aí, se engraçando com a putinha! Merda!
(o trem pára numa estação, a gostosa sai assustada, olhando para trás, o morto no chão)
- Chamo a polícia?
(a porta se fecha e o carro sai)
- Não... Polícia nunca é bom...
(olha para os nomes das estações acima da porta)
- Já ta chegando meu ponto... Porra... Era bom demais na faculdade, solteiro, sem responsabilidade... A mulherada em cima... Agora, nem essa puta olha pra mim... Vai ver pressentiu que eu brochei hoje. Merda! Ainda tem essa! E minha reputação? E se a galera da faculdade sabe disso, tô perdido! Tomara que a Márcia não fale pra ninguém... Não... Não vai falar... Pega mal pra ela também. Ou será que fala? De repente ficou ofendida com a minha brochada... Sei lá... Mulher é bicho estranho... Caralho! Que que eu vou falar em casa? Pensa porra!
(o bêbado vomita em cima do morto)
- Que nojo! Porra... Ninguém merece um filho da puta desses... Nem depois de morto! Esse aí é pior que o Valdão. Nojento. Vou dar uma porrada nele!
(caminha decidido até o bêbado, que cai no chão ao lado do morto)
- Merda... Aí já é covardia... Bater num desgraçado caído! Caralho! E se alguém me ver aqui sozinho com esses dois? Que que vão pensar? Porra, isso vai dar merda. Vou sair logo daqui.
(olha para as estações indicadas acima da porta)
- Falta duas estações. Já sei... Desço na próxima e vou o resto a pé. Aí já é uma desculpa pra hora. Falo que vi um morto no vagão, o trem parou pra averiguação, veio a polícia, o trem teve que ficar interrompido e eu vim a pé. Ainda fico de herói. Isso. É isso. Amanhã sai no jornal, ela confirma e fica tudo bem. Isso aí.
(o trem pára na estação, ele caminha até a porta)
- Tá vendo, nem tudo está perdido... Tirei a sorte grande! Bom, vou recapitular...
(olha para o relógio)
- São cinco pra meia noite...
(a porta abre, ele sai).
COPYRIGHT texto Renata Gabriel
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