Um Presente Azul

Aquele azul cintilava no chão do escritório, enquanto eu me entretinha nos afazeres cotidianos e insólitos da feição de um longa-metragem. Não consigo me lembrar o exato momento que o percebi, mas o ignorei como se ignoram os sinais que a vida tenta inutilmente nos impor. Distraidamente observava aquele triângulo azul imóvel no chão. Seria um pedaço de papel? Eu não me lembrava de ter algum papel daquela cor em casa. Talvez tivesse sido trazido pelos ventos que antecedem as chuvas. No Rio de Janeiro os ventos são assustadoramente fortes, e trazem com a chuva presentes triangulares e azuis. Mas no canto, perto da porta, ele permaneceu. Eu permaneci dentro de mim na euforia de um porvir, e me esqueci do azul que me aguardava inerte. Depois de uma mal dormida noite de anseios e remorsos, responsável por esse torcicolo indecente, voltei ao escritório. Ao ligar o computador, percebi que ainda estava ali o triângulo azul. Como a me dizer alguma coisa. Movida por ínfima curiosidade, finamente resolvi desvendar aquele mistério. Aproximei-me do pequeno triângulo azul. De cima, ainda sem sequer mover o corpo para tocá-lo, pude notar o degradê de um azul intenso, daqueles que só se encontram na natureza, nos pescoços dos pavões ou nas asas das borboletas... Eu não acreditei quando percebi se tratar de uma borboleta o triângulo azul. Por um momento me retive, com a respiração suspensa. Estaria viva? Parece inacreditável, mas muitas pessoas têm fobia de borboleta, e eu sou uma delas. Aquela borboleta azul, talvez em respeito a mim, se movia tanto quanto eu. As duas imóveis se enfrentavam. Ambas presas em seus próprios medos. Eu, do alto de minha grandeza inútil, e ela, pequena e delicada como suas asas azuis que não podia bater. O que estaria fazendo ali aquela borboleta? Eu tenho uma estranha relação com as borboletas. Uma espécie de amor invertido. Uma admiração amedrontadora. Como se eu pudesse, de repente, me transformar numa borboleta. O que me faz lembrar de quanto sou lagarta. De quanto tempo ainda terei, aprisionada num casulo gosmento. E quando vejo uma borboleta, o medo me toma os músculos e eu não consigo me mover. Mas também não consigo tirar os olhos da borboleta, profundamente admirada e desejosa de sê-lo. Como se eu sempre soubesse que fatalmente me transformaria numa borboleta, mas o receio de não conseguir construir meu casulo com dignidade me consumisse. E se eu não for uma bela borboleta azul? Se eu for uma daquelas mariposas marrons esverdeadas cor de bosta? Por que veio agora esta borboleta azul me fazer lembrar de mim? Finalmente consegui inclinar-me sobre ela. De perto parecia morta. Tentei toca-la, mas meus dedos se negavam. Uma, duas, três tentativas. Minhas mãos suavam frias. Respirei fundo, toquei-a de leve. Ela não se moveu. Um calafrio me subiu pela espinha. O que estaria fazendo no meu escritório uma borboleta azul morta? Teria morrido ali, por falta de ajuda? Uma culpa me tomou, e não pude conter um choro compulsivo. Teria ela sobrevivido caso eu não a tivesse ignorado no dia anterior? Meu medo já não tinha importância alguma e eu, delicadamente, peguei com as duas mãos a borboleta morta. Seu azul era infinito. Se eu tiver uma alma, certamente ela tem essa cor. O que fazer? A borboletinha jazia em minha mão e eu não sabia o que fazer para segurar o pranto. Coloquei-a sobre minha mesa, com receio de esmagá-la. Tão sensíveis eram aquelas asas, mesmo sem vida. Que segredos traziam-me aquelas asinhas? Há tempos as borboletas vêm me perseguindo. Ganhei de minha mãe, inesperadamente, uma pulseira com oito borboletas coloridas unidas pelas asas. Ela me acompanha como um amuleto. É incrível como as borboletas que me assombravam tempos atrás, hoje me protegem. Minha afilhada se recusava terminantemente que lhe pintassem o rosto desenhos idiotas para crianças débeis. Ela fazia apenas dois anos e sua personalidade já nos dava o ar da graça. Eu, na tentativa de convencê-la a entrar no jogo, inutilmente, permiti que pintassem qualquer coisa em meu próprio rosto. Obviamente ela não se interessou e permaneceu feliz por não ser como os outros. Eu, igualmente a ela, permaneci diferente aos outros. O que nos difere é que ela insistiu em ser diferente por vontade própria, e eu, para agradar a alguém. Ela era a única criança com o rosto limpo e eu a única adulta com uma borboleta azul na bochecha. Pelo que me lembro, eu devia ter uns catorze anos, era uma noite quente, eu estava sentada no banco traseiro do carro, voltando para o sítio onde morava, quando uma enorme borboleta entrou pela fresta da janela e perseguiu meu rosto. Num duelo desesperador de fuga, em meio a gritos, o carro parou e abriu a porta. A borboleta desistiu de dilacerar-me o rosto somente quando eu me joguei carro afora, espremida entre o banco traseiro e a porta dianteira. A bem da verdade, no meio ao breu e ao pânico, eu não pude ver com clareza se aquela borboleta era uma daquelas bruxas marrons, ou se era um morcego, ou um pássaro, ou mesmo, uma borboleta azul como a pequenina do escritório. Mas, por precaução, passei a proteger meu rosto sempre que via uma borboleta. É claro que eu consegui superar os ataques infantis de pânico quando surgia qualquer singela borboletinha. Escondia-me onde quer que fosse para proteger minha cabeça. Enfiava-me, às vezes, por baixo da camisa de alguém, aos berros, por ter encontrado meia dúzia de miudinhas borboletas brancas, ou uma enorme bruxa marrom tão velha e adormecida quanto a presença de alguém para ela.
Descobri que minha aversão às borboletas tinha algum significado metafórico com uma aversão à vida. A sensação de morrer de velha, no canto do escritório empoeirado como aquela borboletinha azul, me causava um medo resignado num deleite do desejo. Eu já não podia temê-las então passei a escutá-las. E agora, a mudez desnuda dessa borboleta jaz em minha mesa. Aqui se encontra, a fazer-me escutar o silêncio de minha própria voz. Sou uma necessidade. Meus ancestrais tendem a me deixar. Precisarei das asas que essa borboletinha, gentilmente, me deixou. Poderei usar seu azul para encontrar o meu. E, azul, chegarei ao encontro de quem a mandou presentear-me com seu último suspiro. Talvez ainda a descubra, pousada no ombro de um alguém, como a me indicar o caminho. Então, de ombro em ombro, seguirei seu rastro e deixarei o meu. Na esperança de ser seguida, caminharei voando, com as eternas asas azuis de uma borboleta morta.

COPYRIGHT texto Renata Gabriel
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